domingo, 7 de março de 2010

ETIQUETA (Carlos Drummond de Andrade)

Eu, etiqueta


Em minha calça está grudado um nome

Que não é meu de batismo ou de cartório

Um nome... estranho


Meu blusão traz lembrete de bebida


Que jamais pus na boca, nessa vida,


Em minha camiseta, a marca de cigarro


Que não fumo, até hoje não fumei.


Minhas meias falam de produtos


Que nunca experimentei


Mas são comunicados a meus pés.


Meu tênis é proclama colorido


De alguma coisa não provada


Por este provador de longa idade.


Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,


Minha gravata e cinto e escova e pente,


Meu copo, minha xícara,


Minha toalha de banho e sabonete,


Meu isso, meu aquilo.


Desde a cabeça ao bico dos sapatos,


São mensagens,


Letras falantes,


Gritos visuais,


Ordens de uso, abuso, reincidências.


Costume, hábito, premência,


Indispensabilidade,


E fazem de mim homem-anúncio itinerante,


Escravo da matéria anunciada.


Estou, estou na moda.


É duro andar na moda, ainda que a moda


Seja negar minha identidade,


Trocá-lo por mil, açambarcando


Todas as marcas registradas,


Todos os logotipos do mercado.


Com que inocência demito-me de ser


Eu que antes era e me sabia


Tão diverso de outros, tão mim mesmo,


Ser pensante sentinte e solitário


Com outros seres diversos e conscientes


De sua humana, invencível condição.


Agora sou anúncio


Ora vulgar ora bizarro.


Em língua nacional ou em qualquer língua


(Qualquer, principalmente.)


E nisto me comprazo, tiro glória


De minha anulação.


Não sou - vê lá - anúncio contratado.


Eu é que mimosamente pago


Para anunciar, para vender


Em bares festas praias pérgulas piscinas,


E bem à vista exibo esta etiqueta


Global no corpo que desiste


De ser veste e sandália de uma essência


Tão viva, independente,


Que moda ou suborno algum a compromete.


Onde terei jogado fora


meu gosto e capacidade de escolher,


Minhas idiossincrasias tão pessoais,


Tão minhas que no rosto se espelhavam


E cada gesto, cada olhar,


Cada vinco da roupa


Sou gravado de forma universal,


Saio da estamparia, não de casa,


Da vitrine me tiram, recolocam,


Objeto pulsante mas objeto


Que se oferece como signo de outros


Objetos estáticos, tarifados.


Por me ostentar assim, tão orgulhoso


De ser não eu, mar artigo industrial,


Peço que meu nome retifiquem.


Já não me convém o título de homem.


Meu nome noco é Coisa.


Eu sou a Coisa, coisamente.






(Carlos Drummond de Andrade)

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